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Missão do Deus Criador

Marca pequena 11 Concilio

Carta Pastoral ao 11º Concílio da Diocese Anglicana da Amazônia.

 1.O tema diocesano para este ano é:“A Missão do Deus Criador”,tendo como lema: “Pois sabemos que a Criação inteira geme e sofre até agora com dores de parto” . Ao escolhê-lo, o Conselho Diocesano está em sintonia com toda a Comunhão Anglicana e pensando na urgência que temos em “salvaguardar a integridade da Criação, sustentar e renovar a vida da terra”. Essa é a quinta marca da missão da Igreja que nós anglicanos consideramos como inspiração para que “trabalhemos na transformação dos reinos deste mundo no Reino do nosso Senhor Jesus Cristo” .

 2. Podemos utilizar muitos argumentos racionalmente claros para justificar essa opção da Comunhão Anglicana, começar falando que a justiça ambiental é uma questão urgente diante das grandes mudanças climáticas que o mundo vem enfrentando. Mesmo que concordemos com a ideia de que essas transformações são inevitáveis e façam parte dos processos cíclicos de mudança do planeta, parece que a ação humana tem contribuído para o agravamento da situação. Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) declara:“A influência humana foi detectada no aquecimento da atmosfera e do oceano, em mudanças no ciclo global da água, em reduções de neve e gelo, no aumento global do nível do mar e em mudanças em alguns eventos climáticos extremos” . Observei as dores das transformações muito de perto este ano no arquipélago de Fiji onde 640 comunidades estão sendo mudadas por causa da elevação do nível dos oceanos. Simplesmente as terras onde vivem essa gente estão sendo alagadas.

3. Mas, para mim, a razão principal é que nós cristãos, por uma interpretação enviesada da Bíblia, somos em grande parte responsáveis por uma maneira de pensar que ajudou a criar a atual situação de desrespeito à natureza. Ao lermos com “olhos cobiçosos” algumas passagens bíblicas entendemos que “domínio” era igual à exploração sem limites. O que no fundo é uma equação aparentemente natural. Por isso, temos uma dívida que precisamos urgentemente resgatar. Uma visão religiosa estreita que vê apenas o ser humano, ou ainda de forma mais reduzida somente sua alma, como único objeto do interesse divino, não se sustenta através dos textos bíblicos. Uma perspectiva afunilada que bane todo o resto da criação divina do paraíso divino não encontra acolhida no coração de Deus.

4. A grande mensagem do livro de Gênesis encontra-se logo no primeiro versículo: “No princípio criou Deus os céus e a terra” . Na compreensão do autor, tudo é obra da mão divina. Isso não está apenas no primeiro livro da Escritura, também o salmista já cantava: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” . Nessa estrada também envereda o apóstolo Paulo ao declarar muito tempo depois que desde o princípio os atributos de Deus e “o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas (natureza), de modo que eles são inescusáveis...” . E os cristãos assumiram essa compreensão no Credo Niceno: “Cremos em um só Deus, Pai Onipotente, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis...”

5. E finalmente, para não passarmos muito tempo citando fontes bíblicas, o próprio São Paulo constrói uma compreensão da salvação que envolve toda a natureza. É esse entendimento de São Paulo que utilizamos como nosso lema deste ano. Escreve aos cristãos de Roma que “que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora; e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, aguardando a redenção...” . Não seria isso o eco natural do propósito da morte de Cristo: “pois que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” .

6. É bom ressaltar que enquanto nós cristãos alimentávamos a caldeira da depredação sustentando a posição privilegiada dos humanos para explorar as riquezas da criação divina e sonhando com um céu destituído de animais e árvores, muitas outras culturas estavam abertas para acolher uma visão do mundo que dava um lugar de destaque e tratava com sensibilidade a natureza. Os nossos indígenas, por exemplo, apesar de distintas concepções, estabeleceram há muito tempo uma relação afetuosa com a Terra. Ela é a grande mãe, uma parte integrante da vida em sociedade. Há alguns anos eu dancei o toré, uma dança dos índios xucuru kariri, ao ritmo de uma música que dizia no seu refrão: “A terra é santa, a terra é do índio, a terra é de Deus”.

7. Na modernidade a crescente consciência ecológica nos obrigou a enxergar os textos bíblicos com outros olhos, usando óculos bastante diferentes do passado. O teólogo e paleontólogo católico romano, Teilhard de Chardinpossuído por essa nova enxergância entendia que existeuma união criadora entre o mundo e Deus, tudo está interligado, por isso precisamos ser “Guardiões da Terra” . Não seria essa uma leitura cristã da visão do britânico James Lovelock que enxergava a Terra como um único organismo vivo (Gaia)?Nilson Chaves, cantor e compositor paraense, colocou na viola esse sentimento: “A pedra canta, a planta fala/ O rio vê/ O vento sente, a chuva chora/ O raio lê/ O peixe sonha, a rosa dança/ Tudo é o mesmo ser/ Tudo é o mesmo ser/ Tudo é o mesmo ser/ Gaia, gaia, tudo está vivo/ Tudo respira, eu e você”.

8. Faz muito tempo que os anglicanos estão envolvidos com a questão de preservação da Criação. Minhas pesquisas me levaram a uma resolução da Convenção Geral da Igreja Episcopal dos Estados Unidosdirigida ao Congresso e ao Presidente Jimmy Carter,em abril de 1977, pedindo que promovesse o uso de fontes energéticas que causassem o mínimo de destruição ao meio ambiente. Com certeza devem existir iniciativas anteriores de instâncias da Igreja que levaram a esse pronunciamento. Esse movimento só tem crescido entre nós e no meio de outras tradições cristãs.Em uma encíclica de 2015, o patriarca da Igreja Católica Romana “lembra que as criaturas não existem para o simples bem-estar e usufruto do homem, mas como criaturas nascidas do coração de Deus e todas têm a sua razão de ser no mundo; a de contribuir na construção da pessoa humana e junto com todas as demais criaturas caminhar para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina” .

9. Quando falamos sobre o tema precisamos levar em consideração imediatamente o papel das grandes corporações e dos governos. Afinal, estão na linha de frente defendendo um modelo econômico que está levando a Terra a exaustão. Estamos consumindo mais do que o planeta consegue produzir. É preciso profeticamente denunciar e buscar novas formas de existência no planeta. Todavia, não podemos esquecer que existe uma ética cristã exigindo que cada um de nós façamos a nossa parte. E isso não significa apenas participarmos de manifestações e assinarmos documentos, mais vivermos a experiência da defesa da Criação no nosso dia-a-dia.

10. Aqui chegamos a uma área nebulosa. Como podemos atestar facilmente, todo discurso e toda ação sócio-política cai por terra quando observamos a nossa prática cotidiana. Pequenos gestos fazem uma enorme diferença (Jesus nos lembra que coisas miúdas são importantes ). Então pergunto sobre atitudes simples:continuamos a utilizar sacolas plásticas? Deixamos a torneira da pia aberta enquanto lavamos os pratos? Queimamos material orgânico no quintal de nossas casas? Utilizamos embalagens não retornáveis? Bebemos água em copos descartáveis? Compramos produtos transgênicos? Se você respondeu positivamente a grande parte dessas questões, precisa pensar seriamente sobre sua relação com Criação... Ainda não está vivendo o advento de um novo céu e uma nova terra, não estamos pensando ainda em renovar nosso mundo.

11. O apóstolo São Paulo nos ensina que devemos ser exemplos (1 Tm 4:12). Não podemos exigir do outro o que nós mesmos não fazemos. Então, isso me leva a conclusão lógica de que precisamos mudar nossa compreensão e nossas atitudes diante da Criação. Creio que nesta perspectiva Gandhi traz uma importante lição, conta-se que "uma mãe muito preocupada com seu filho, que comia muitos doces, pediu a ele que o aconselhasse a largar seu vício. Ele respondeu: 'volte aqui em duas semanas'. Passado este tempo, quando se encontrou com o menino, Gandhi disse: 'Você deve parar de comer doces, isso fará muito mal a sua saúde'. Então a mãe do menino perguntou: 'Porque o senhor nos pediu para esperar este tempo para aconselhar meu filho?' Ele respondeu: 'Porque há duas semanas eu mesmo ainda comia açúcar'" .

12. Como franciscano encerro esta pastoral com o Cântico da Criaturas:

“Altíssimo, onipotente, bom Senhor,/ Teus são o louvor, a glória, a honra/ E toda a benção./ Só a ti, Altíssimo, são devidos;/ E homem algum é digno/ De te mencionar./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Com todas as tuas criaturas,/ Especialmente o Senhor Irmão Sol,/ Que clareia o dia/ E com sua luz nos alumia./ E ele é belo e radiante/ Com grande esplendor:/ De ti, Altíssimo é a imagem./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Pela irmã Lua e as Estrelas,/ Que no céu formaste claras/ E preciosas e belas./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Pelo irmão Vento,/ Pelo ar, ou nublado/ Ou sereno, e todo o tempo/ Pela qual às tuas criaturas dás sustento./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Pela irmã Água,/ Que é mui útil e humilde/ E preciosa e casta./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Pelo irmão Fogo/ Pelo qual/ iluminas a noite/ E ele é belo e jucundo/ E vigoroso e forte./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Por nossa irmã a mãe Terra/ Que nos sustenta e governa,/ E produz frutos diversos/ E coloridas flores e ervas./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Pelos que perdoam por teu amor,/ E suportam enfermidades e tribulações./ Bem aventurados os que sustentam a paz,/ Que por ti, Altíssimo, serão coroados./ Louvado sejas, meu Senhor,/ Por nossa irmã a Morte corporal,/ Da qual homem algum pode escapar./ Ai dos que morrerem em pecado mortal!/ Felizes os que ela achar/ Conformes á tua santíssima vontade,/ Porque a morte segunda não lhes fará mal!/ Louvai e bendizei a meu Senhor,/ E dai-lhe graças,/E servi-o com grande humildade.”

+Saulo Barros

Belém, 15 de março de 2017 AD.